quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

EM DEFESA DOS INDIVÍDUOS SEM FACE



Os olhos são esferas turvas de vidro;
Os lábios são duros, sem gesto
Esculpidos em pedra.
Ah!
Sinto profunda pena deles!

São todos iguais:
Usam as mesmas marcas,
O mesmo cianeto
Como se fosse remédio
A mesma mortalha bege
Em dias de sol forte,
A mesma janela
Onde plantam futuros de plástico;

Usam - todos -
Sentenças esfareladas
Que um dia foram frases feitas;
A mesma falácia como prova
De um saber prescrito;
Praticam a ancestralidade ritual
Como animais
Que não possuem mais que o instinto;
Andam como baratas envenenadas
Comprando horizontes artificiais;
E, pobres coitados!
Como são felizes!

Transportam baús
Contendo um arsenal de inutilidade;
Transportam nos corações amores parvos
- Não mais que um melaço de alcatrão;
Transportam nas costas mantas de chumbo;
Valem-se dos contratos de gaveta
E pequenas mandingas.

Completamente incapazes
De ressignificar símbolos,
Entender formas, cores, sons, nuances
Quando são acometidos de solidões.
Ah!
Tenho muita pena deles!

Assistem, semideitados, os histriões
Até contraírem barrigas pontudas
E braços finos.
Tenho muita pena deles
Pois estão mortos!

Peço a um deus paciencioso
Que lhes conceda rosto,
Objetivo,
Personalidade,
Hoje são criaturas embalsamadas
Numa prateleira;
Ninguém há de comprá-los
Pois são sem utilidade,
Sem profundezas,
Sem alma.


(Leonardo Alves 03-04/01/17)



sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

ENSAIO ACERCA DA TEMPESTADE


[I]
Sem luz elétrica
Ouço os estrondos
Dos relâmpagos.
Na escuridão
Que se sobressai em mim
Tudo é vasto,
Sem limite.

[II]
Despido da domesticidade,
Despido de erudição,
Despido de pudor.
A tempestade cinza
Me pertence
Como instrumento
Que há de elucidar
O códice do tempo.

[III]
Perfurar o vento:
Adentrar
Na solidez do vento
Como se fosse
Uma gruta.

[IV]
Perfuratriz,
Broca de carbono;
Ver a procela
Em seu âmago:
Metamorfose
Álgida de véu
E prata.

[V]
O vidro maleável da chuva:
Quebrá-lo com a silhueta,
Correr, correr
Até onde a água é dura e pesada
E meditar;
Descompondo o corpo
Descompondo o pensamento
Na consubstanciação líquida.

[VI]
Sou a natureza
Em grito, aferro;
Não sou meus ossos
Gastos da coluna vertebral;
Sou a natureza,
Penetro no íntimo da guerra
Fera de estampidos
E erupções dos céus.

[VII]
O Butano ilumina o ventre de cal
A casa tem forma de concha;
O desgaste natural das paredes
E a umidade
Mostram formas irregulares
Mas com sentido claro.
Volto do cerne
Da esfera e da procela
Com olhos imantados
De novas visões.

[VIII]
O telhado estrala,
As janelas estremecem
O som retido
Na polpa dos ouvidos
E na pirâmide
Do entre objeto
Decodificado.

[CODA]
É preciso que a tempestade
Se estenda ainda alguns dias
Para que eu sinta saudades do sol
Pois não posso morar dentro do sol
O sol é agreste
E até hoje só me fez envelhecer...
Por ora moro na procela
Por ora me confundo
Com ela
E estou feliz.

terça-feira, 19 de abril de 2016

Morte pela água

No bar de esquina
Com um inominável país
E perto do fim
Eu bebia com um amigo

Entre nós
Uma conversa calma
E antiga – de bons
& velhos camaradas

A cada silêncio do nosso diálogo
Avizinhavam-se fragmentos verbais
De todos que ali estavam:

O futebol, ah, o futebol
Muito futebol,
Previsão meteorológica,
Dinheiro, dinheiro e política

Pessoas de diversas as idades
Falavam energicamente
E uma televisão grunhia na parede 

Voltávamos a falar
Parcimoniosamente
Até a próxima pausa:

Quando a multidão vinha nos compartilhar
Seus dilemas alegrias e problemas
E mais futebol e dinheiro e política

E numa lacuna do nosso diálogo
Ouvi, crescendo o som marítimo
Em ondas ligeiras

Estrondo cólera de um ignoto mar
Cada vez mais forte e ensurdecedor
E as vozes das pessoas que ali estavam
Foram silenciadas pelo turbilhão d’água

Todos estavam sendo levados pela inundação
Homens mulheres crianças:
Foram suplantados daquele momento
Daquele tempo

Quando fui falar com meu amigo
Ele não estava mais ali
Provavelmente havia sido levado também
Pelas águas brutais

Fiquei sozinho
Bebendo
Talvez ele nem estivesse ali
Em momento algum
Meu amigo...

Por graça divina as ondas
Não haviam arrastado o barman
Que me serviu mais uma cerveja
E eu fiquei  conversando comigo mesmo
Esperando que as ondas viessem me buscar
Finalmente.

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Não quero perder as palavras

Não posso
Não quero
Perder as palavras
Que ao longo da vida
Guardei

São poucas
Mas suficientes
Para possuir o tempo
E a noite

Garatujo o mar,
A fuligem que o vento leva,
O balouçar de ciprestes
Lua em véu – volúpia

Gládio de silêncio e fogo
Pilastras de mármore
Lira, Ítaca e caverna

Tumba prenhe de ouro
Rochas de espanto
Espumas aladas
Cadafalso onde improviso
Esse drama

Sons
Símbolo
Se desdobram
E se multiplicam

Palavras tão caras
Dependentes
Da máquina orgânica

Hemisférios
Neurônios córtex
Vasos sanguíneos
Carótida tálamo

Que eu morra 
Antes de perder as palavras
Pois elas são meu corpo
Sólido & frágil

Mas persistente.

quarta-feira, 30 de março de 2016

[Apreciarás o sabor]

 

Apreciarás o sabor
Destes frutos
Que são minha fome

Mesmo seco & deserto
Saberei apaziguar
Tua sede

Mesmo sem rosto
Saberei te dar
Um riso de conforto

Mesmo absorto
Na minha dor
E ferida ancestral
Saberei estancar teu sangue
Após tuas batalhas mais terríveis

Mesmo eu sendo pó
E mesmo que minha língua
Tenha sido roída pelo tempo

Terás minhas palavras
Como manto
E alento.

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

[O Segundo]

O segundo
Que ora consumimos
Cravado no
Transcorrido
A cera disforme
De um círio -

O raio do círculo
Inquieto
Marcando
O pouco que ganhamos
E se perderá

Óbvio é o gesto
Pretérito
Mesmo no instante
De pensá-lo

O movimento é inútil
Não há dínamo que resista
As estrelas se apagam
Preside na noite a quietude
Da máscara mortuária.

domingo, 10 de janeiro de 2016

[Não sou o que fui]

Não sou o que fui
Nem o que seria
Sou
A grama
O rasto
de Algas
No corpo

Não serei o que perdi
O que hei de perder
Sou
Despojado
Estátua de sal
Na chuva

Não prometo nada
Convivo calado
Com objetos
Projetos
De silêncio
Passo o tempo em drágeas
Por intervalos de dor

Concubina da insatisfação
Não sei crer
Nem rezar
O mundo se move brusco
Sob meus pés
O mundo explode a cada segundo

E lá no fundo dos
Escombros
Brilha um estilhaço de vidro

É minha voz
Desmaiada


 Contestando o caos.