segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Ao Som de Um Rio Inquieto (esboço)

[antes que o tempo acabe, é preciso cantar. mesmo de forma tímida. um ensaio, um grito – projeto. obra/vida-em-progresso. pequeno poema que ainda não acabou, que vai se construindo, através do olhar observador: o dia, a noite e os velhos tomos. uma pena ainda lutando contra o tempo e perdendo – mas insistindo. um desejo de ser relevante, de revelar a essência, abrir os olhos dos homens. desejo de um dia poder dizer: deixei palavras]

primeiro

se fosse possível segurar a certeza em uma das mãos
e atravessar com ela o deserto
se a certeza fosse uma revelação clara e pacífica

mas ainda carregamos confusos
o peso de dois oceanos nos olhos
e a chuva magoa o último passeio

dor de quem permanece sondando
a aspereza inóspita de uma floresta –
ah, alívio de quem parte – com ou sem resposta –
o vento é o débito com nossa senda e sangue
pois há o momento em que o calcário e os granitos
são iguais e semeiam esse cansaço
de não conceber a eternidade.

os deuses não são eternos
tornam-se obsoletos como roupas
ainda assim indagamos a eles
(com palavras abafadas numa necrópole):

ah nós tão ínfimos
insetos numa adega abandonada,
teremos a possibilidade de conhecer
o escudo contra o tempo?
e por um instante antever
o que é inabalável,
mesmo que percamos os olhos nesta revelação?

é tão improvável.
todos, depois de terem visto o velho mundo
e tirado fotos de igrejas, estátuas
saem de olhos tristes pois esperavam mais
mais do que monumentos mortos,
que só dizem morte

um dia desaparecerá este modo de ser
esse riso confuso
essa confiança nos frutos do tempo
e o enamorar-se pelas coisas líquidas
um dia quando o dia estiver perto
teremos a memória como utensílio
e um hábito de conviver com os mortos
na sala de estar vazia

o cortejo será quase casual
um ensaio para a sombra
e os dísticos derradeiros
não causarão desconforto

depois que os dias forem este sol entrando na janela
feito um refrão
ficaremos humildemente lembrando
que era tênue a infância
e uma afronta às horas poder brincar e criar
a investida
o ensaio para a beleza


segundo

o quarto de quimera
ainda guarda os resquícios de seus gestos
o travesseiro mantém a forma macia do seu sono
no lençol o aroma da sua pele
e o copo d'água à espera do seu hábito
faz parecer menos remota sua ausência

o copo espera
seus lábios que já não beijam
já não dizem

se fecharmos os olhos
sua imagem surgirá
provisoriamente
mas as engrenagens e os galos
trabalharão para desvanecer sua figura e voz

quimera parece nunca ter vivido
foi alguém que sonhou sua vida?
É possível que ela nunca tenha existido
a despeito do quarto
manter os seus últimos rastros

nesse ínterim a vida segue
lembrando que o brilho de um olhar
e a sede em um copo
é instante prestes
a ser partido



terceiro

quatro da manhã
as cartas surradas
nas mãos manchadas de nicotina

parece faltar muito tempo
para o jogo ter seu término
e os jogadores, ébrios -
enfim se dispersarem

a madrugada suspensa – aquém
e além do espaço
sob os ícones de paus espadas

moedas são metáforas
de uma riqueza que não se aposta
e o confronto com o dia
inevitável

os dentes dos jogadores estão cinzentos
e gastos como as imagens dos reis e valetes
começa a desbotar no horizonte
uma espécie de sábado
um prenuncio eloquente de sábado

mas enquanto não acaba o jogo
é sexta.
enquanto não acaba a cachaça
é noite de sexta-feira
tentando penetrar
na brecha onde o tempo não passa –

a despeito do esforço
há de ser sábado
e depois domingo
e depois


quarto

quem há de duvidar
de que seremos olvidados?
através de documento oficial
nos foi informado acerca da lembrança

e que o sangue pretérito
não honrará o futuro
todo esforço é pouco para nominar o mistério
e reter a voz nesse mundo de coisas breves

todo esforço é pouco
mesmo assim é inevitável enfrentar mais um cortejo
reprimir o cansaço

resto, resíduo
o que restará de mim?
por um tempo dirão
que era distraído e ficava
deveras curvado enquanto trabalhava

o que restará de mim? Restolho, resíduo?
vão reaproveitar meu guarda-chuva
meus sapatos continuarão sem rumo?
e os versos sem prumo que deixarei
algum sentido encontrarão nessa terra?

nem guerra nem pássaro pousado
no cano do fuzil
é essa fome e essa febre
esse sacrifício de não dormir
para sublevar o silêncio
e sentir a acolhida dos anjos-invenção
é preciso dizer as palavras
para abrir uma passagem dentro da rocha
é preciso de palavras que saciem a vontade de prece
para entrar no íntimo do ser
é necessário relembrar ao homem o poder
de dar fenômeno às coisas

quinto

muito antes de nos depararmos
com a história de cronos
deus caviloso que devora os filhos
ou de sísifo execrado
à eterna pedra, eterna pena
antes, também, de sabermos decifrar
as letras, suas sutilezas, seus ardis

somos iniciados na leitura das horas
em relógios incansáveis
e juntamente com tal ciência
aprendemos a medir o tempo
através de calendários

o que um menino
poderia ter contra o tempo
se na infância de seus dias
é quase eterno?

na sala que vai se tornando antiga
no pulso ferindo o osso
os relógios, todos, despertam

no tempo certo de
imantarem a noite
com presságios de de cal e sono
e vão assumindo formas diversas:
seja o ronco do encanamento
a torneira pingando
o grito deserto e pontual do cão
na madrugada

o mais terrível objeto
se projeta, o maior algoz
dos frutos, todos
não é o espelho
mas o relógio: monstro vário
nesse contato
tácito com a morte

onde está o projeto
que silencie
a voz miúda das engrenagens?
(sem que percamos esse raro sopro
-instante)
tão engenhosas, engrenagens
a desdenhar de nós
e do relojoeiro
criatura taciturna
e sem tempo

onde, onde
o refúgio da azáfama?
onde não ser sísifo morto-vivo
do cotidiano (num dia que
resume todos)?

não existe, definitivamente
numa forma cabível
aos olhos pequenos

entretanto o que não existe
na cegueira de ver tão só o tátil
pode ser inventado - imaginado

ah, imaginação brinquedo achado inútil
da infância -imaginação
brinquedo doado sem piedade
ao orfanato dos sonhos

e ser imaginação
não é ser menos
tendo em mente
que só o imaginado perdura
nessa luta do homem
contra as rochas
mistério e memória

no ámago desse fruto mal sabido
há um segredo, um esconderijo
na reverdescência dessa arte
o verbo, o verbo:
linguagem
que sempre esteve em nós
linguagem
feita para superar estátuas
colunas que o vento
e a areia consomem

assim
o jogral se escondeu
na sombria biblioteca
e consumou a beleza

o mundo pequeno
a vida – instante
mas a arte fez-se longa
no gesto de uma religião

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Exercício I

É preciso vencer
o homem-plástico
o grito sintético
e a escada de feno

e conhecer
as chaves da caverna
o segredo das rochas

açular vocábulos sonâmbulos
no desterro de cimitarras
e afiar a vidência
na  saliva das uvas

Não há mais necessidade
de barcos ou fragatas–
os bardos ébrios

condicionam as estrelas
e violentam o cosmo.

fim-de-tarde-azul

deitado na cama
espero o domingo passar
- rochedo cinza
consumido pela água
calma

deitado na cama
observo uma aranha
que vem em minha direção

caminha pelo cobertor
queimado de cigarro
e parece trazer a morte
no corpo
para meu corpo de palha

o primeiro impulso
seria dar termo
ao seu modo de ser
mas permaneço desfeito

ela chega perto, cada vez mais...
...mais
seria a aranha armadeira?
aranha-macaco?
suas presas são grandes
não tenho ânimo ou gesto

ela se aproxima
ela venceu
ela me procurou por anos
e me limito a bocejar
pela grandeza desse encontro

quisera eu ter o ímpeto a
agressividade desse
artrópode – perfeito para o dia 
que escorre pelas paredes
inoculando o veneno

domingo
peçonhento e úmido
- a aranha não traz sobressalto
tanto tédio a vida!

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Cronos - ou o aprendizado da imaginação

[trecho de um poema mais longo que escrevo sem pressa. ainda sujeito a várias modificações. fica esse projeto, num primeiro momento, que tenta abarcar uma certa unidade.]

muito antes de nos depararmos
com a história de cronos
deus caviloso que devora os filhos
ou de sísifo execrado
à eterna pedra, eterna pena
antes, também, de sabermos decifrar
as letras, suas sutilezas, seus ardis

somos iniciados na leitura das horas
em relógios incansáveis
e juntamente com tal ciência
aprendemos a medir o tempo
através de calendários

o que um menino
poderia ter contra o tempo
se  na infância de seus dias
é quase eterno?

na sala que vai se tornando antiga
no pulso ferindo o osso
os relógios, todos, despertam

no tempo certo de
imantarem a noite
com presságios de de cal e sono
e vão assumindo formas diversas:
seja o ronco do encanamento
a torneira pingando
o grito deserto e pontual do cão
na madrugada

o mais terrível objeto
se projeta, o maior algoz
dos frutos, todos
não é o espelho
mas o relógio: monstro vário
nesse contato
tácito com a morte

onde está o projeto
que silencie
a voz miúda das engrenagens?
(sem que percamos esse raro sopro
-instante)
tão engenhosas, engrenagens
a desdenhar de nós
e do relojoeiro
criatura taciturna
e sem tempo

onde, onde
o refúgio da azáfama?
onde não ser sísifo morto-vivo
do cotidiano (num dia que
resume todos)?

não existe, definitivamente
numa forma cabível
aos olhos pequenos

entretanto o que não existe
na cegueira de ver tão só o tátil
pode ser inventado - imaginado

ah, imaginação brinquedo achado inútil
da infância  -imaginação
brinquedo doado sem piedade
ao orfanato dos sonhos

e ser imaginação
não é ser menos
tendo em mente
que só o imaginado perdura
nessa luta do homem
contra as rochas
mistério e memória

no ámago desse fruto mal sabido
há um segredo, um esconderijo
na reverdescência dessa arte
o verbo, o verbo:
                           linguagem
que sempre esteve em nós
linguagem
feita para superar estátuas
colunas que o vento
e a areia consomem

os relógios e os calendários
parvos: sempre poucos
para sublevar as relvas de whitman.

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

luar de calcário (uma proposição)


olha para a lua e põe em jogo
seu conhecimento em numismática -
a lua é ouro? Venal? Metal
precioso no comércio?

os lábios de poliedro
não alcançam exprimir
dor ou contentamento.

cotidiano o alinhamento do corpo
duas mãos breves tentam em vão
romper a placa de verniz
que o separa dos verdes macerados.

o corpo -
é ausência conturbada
num santuário de ordenações
ares guardados
e fugas fraturadas

mesurando com esquadros
e desenhando seus sonhos
perfeitos
a partir de um compasso

a lâmina na pele
um barbear cirúrgico
e as coisas milimétricas
sobre a mesa esperam -
a vida prática
que nada pede ou exige
do eterno esvoaçante

os dias passam e no retrato
e no portifólio gestual
sombra que tece o espelho:

tudo organizado
geometricamente claro
como um bloco de concreto
matando a vida
agreste
imprecisa
mal sabida

Pois
só no silêncio há perfeição

domingo, 14 de setembro de 2014

[dentro da noite]


dentro da noite se abre
uma outra noite
mais densa e silenciosa

apaziguando o relógio, as chuvas
e o indizível coração da caverna -

essa outra noite
mais densa e silenciosa.

cuja forma é mais perfeita
que perfeição da esfera
e o ritmo em órbita
dos astros

salmo sem palavras
prece sem medo
acalanto sem mistério

a beijar nossa alma
finalmente elemento etéreo
- é a paz que almejamos
- é o pouso que amamos

sem ter sabido
que amávamos
por toda vida

essa outra noite
mais densa e silenciosa

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

os barcos depois da tempestade




no outro dia encontrei-a
em um porto pacífico
uma laguna plácida enchia nossos olhos
como contraste à turbulência da sombra

ela descobrira missivas de sangue
que eu deixava às portas dos sonâmbulos
queria conhecer o lancinante guerreiro
que não sabia lutar

mesmo sem conhecê-la até então
reconheci a amiga de várias infâncias
e consorte do mesmo embate
recitei meus diálogos com recessos escuros
do meu destino amassado
enferrujado em campo baldio

ela me contou de versos esparsos e seus signos:
uma rainha destronada
em busca de um reino e do tempo
lutando contra amplitudes
triste insone
furando na densa cortina da noite
caminhos para a luz

tarde de encontrar tesouros perdidos num naufrágio
tínhamos o mesmo estigma
e o mesmo gládio sóbrio

“está um dia bonito, a vida tomando forma
e teu rosto será sempre meu princípio
e a inspiração para um bravo recomeço”

“eu serei tua direção espiritual teu conforto
o espelho do teu medo
e a cura deste medo
tua calma
e crescerei ao teu lado
pois também tenho enfrentamentos
tenho desentranhado mitos muitos
do coração”

ela revelou profundezas
e o licor de algures
ficou na taça esquecido
mas minha alma se encheu de esperança
eu não estaria sozinho na contenda

juntamos as mãos num gesto
novo e ancestral
nos reconhecemos, afinal
e a solidão foi um barco que partiu vazio
com sobras de outros dias
com nossos despojos

caminhamos juntos de mãos dadas
ao pôr do sol
seguiremos caminhando
no breve tempo de existir
mesmo que não haja sol.


sábado, 23 de agosto de 2014

Barcos na tempestade




We are the hollow men
We are the stuffed men
T S ELIOT
os livros lidos não pesam
não fazem volume
o que ingerimos
não faz diferença

qualquer vento nos leva
estamos mortos
carregando nossos ossos
em uma maleta simétrica
cotidianamente
seguindo e ouvindo o caos
como se fosse o cantar de anjos
sobre estátuas de cobre
estamos mortos
mas vivos o suficiente
para ligarmos a tv
recolhermos a voz
e, assim, desfazer, o gesto

na verdade precisamos
de um pouco de álcool
para encher nosso estômago
e esquecer o que não lembramos
ou não nos foi ensinado
esquecer
o que não tivemos força de espírito para buscar
precisamos de álcool
ou qualquer outra substância
que nos impeça procurar por um sentido oculto
no viés da madrugada tóxica na qual se ouve o caminhar de ratos
nas folhas secas do tempo
na qual se ouve
um rio sem fôlego
de todos nós
por todos nós
gemendo

sem coragem para tirar os olhos da superfície
apanhadores sucata tecnológica
freqüentadores da casa de leucotomia
na viela sem luz no beco sem som
abrigados na carcaça de um relógio

alguns, mais soturnos
ouvem sempre
um estribilho já sem força semântica:
“se continuares assim não vais longe”

mas ir longe deve ser apenas
uma das tantas convenções
que nos fazem embrutecidos
ir longe quer dizer
uma forma diferente de de desperdiçar a vida...

ela disse que que eu não poderia fumar no local
tudo bem, mas eu torno a perguntar onde fica o “longe”
ela sorriu de forma cinzenta
e me prescreveu algumas drogas controladas
no fundo ela não sabia onde fica o “longe”...
as portas permanecem fechadas
para o renascer de qualquer mito

somos a geração pragmática
a geração estática
sem mal darmos conta que estamos
com a alma fendida
qual a direção do ir longe?
Ir longe é enfeitar a casa para uma festa
que aconteceu ontem?

corremos atrás de dinheiro
só falamos em dinheiro
até em preces pedimos dinheiro
vamos para um templo resolver nossos problemas financeiros
lemos o bhagavad-gita a procura de dicas
para sermos prósperos
e adquirir um dente de ouro-última moda da semana
entramos com ações judiciais
contra o vendedor de algodão doce, o pipoqueiro
o leiteiro

assim como
ofertavam aos autóctones
espelhos a preço de escravidão
como última tecnologia
da europa

ofertam-nos
tudo que não precisamos:
olhos mágicos perecíveis
penicos eletrônicos
tevês ergométricas
aparelhos de não ouvir
cadeiras multimídia de não descansar
óculos 3D para ocultar as árvores
limpadores de cocô de pombo wi-fi

olhamos maravilhados
como os primeiros índios
olhavam para os espelhos
vendo suas próprias caras
na lâmina tecnológica

compramos
sim compramos tudo
por que não?
temos cartão
e o milagre da economia
apple em 10 vezes

compramos
para encher no nossos baús
e esquecer o que não lembramos
ou não nos foi ensinado
esquecer
o que não tivemos força de espírito para buscar
só não conseguimos comprar
o mês presente
conjugar o amor

somos órfãos
de algo que nos contemple
verdadeiramente
uma verdade espiritual
que nos dê a chance de nascer

Espero que nossos olhos cansem
Espero que a escuridão mais densa que a noite
chegue e leve nosso aspecto
de desespero
o fogo purifique a pele
e consuma as escaras do espírito

estamos tão opacos
com aparência de espantalhos
mas usamos algumas fragrâncias
e colocamos panos caros
por cima das feridas
por cima dos braços
de palha
do tórax
oco

Espero que nossos membros se abram finalmente
Espero que a escuridão mais densa que a noite
chegue e leve nosso aspecto
de barcos na tempestade
o verbo purifique a pele
e consuma todo o desnecessário
para ficarmos a sós contemplando
a dialética do instante
sem medo de que o instante
é tudo o que temos

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Jean Nicolas

Em 1891
O corpo ressequido e mutilado
de Jean Nicolas
Finalmente descansou

Mas a eternidade
Quis segurá-lo pela mão
Não morreria tão cedo

Jean Nicolas
Cada vez mais vivo
 -Mais vivo do que quando carregava oito quilos
De ouro na cintura
Nos desertos da Abissínia-

A poesia antes dele
envelheceu
A poesia depois dele
Até hoje tenta renovar-se

Mas sempre à sombra
de Jean Nicolas
Arthur Rimbaud

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Mr. Hyde


Quanto tempo
para fundir
em definitivo
o Dr. Jekyll
no Mr. Hyde?

quanto falta
para aprontar
o maldito
Frankenstein?

quantas flores
trituradas
só para aromatizar
a manhã?