domingo, 27 de abril de 2014

Homero


No mesmo sol
Que acariciou o rosto
De Homero
Está a poesia!

Na mesa de bar
No falar do povo
Nos adágios gastos
No ônibus lotado

No fervor místico
Na sanha do ateu
Na voz da criança
Na pedra tumular

Na madeira podre
No desgaste dos ossos
No vento de sempre
No eterno rouxinol

A poesia está em tudo
Mas não se lança fácil
Aos nossos braços
Sem artefato

É preciso também ser íntimo
Da madrugada e do tempo
E uma predisposição
À tez do silêncio

É preciso paciência
Nada esperar
Nenhuma recompensa
Além da própria lírica

A poesia é mais importante
Que o poeta.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Persona

como se mata o eu lírico?
como se salva o poeta
por sua vez
persona poética?

como se mata o personagem
a sufocar e obscurecer o criador
esse
também ficção?

como partir em pedaços a máscara
e não quebrar o rosto?

a voz que ressoa
como o corvo de Poe
terá realmente um fim?

vida & arte arraigadas
em que camada
está o fingir?

no sonho está a vida
que rege claridades
assoma a sala de estar

no sonho está a verdade
que irrompe
à pele nua

e perfaz a realidade...

que no livro
esteja o alívio
deixar as roupas
e o roteiro

no livro
vivo eu lírico
morta em vida
a persona

no livro
o grito
falaz ficção
que foi ser

em vida?
não importa a sombra
importa a máscara
partida
vazia
a lírica-vida
salva...

terça-feira, 1 de abril de 2014

Apolo - apontamento de um poema em progresso

... e finalmente o dia rebenta
das dobras úmidas do alvorecer
no ar o bocejo amargo
cidade mal dormida que desperta

o caminhão do lixo e o gritar desmesurado dos garis
levam a biografia descartada
a história de cada ser em seus detritos

expiação daqueles que não fecharam os olhos ainda
golpe desfechado nas cortinas transparentes
...claridade...
limbo violentado
folhas desfalecidas à cabeceira
escritas com dor e parcimônia...

rascunhos de uma vida lamuriada
de uma vida curvada às portas da agonia
o que paira como ressentimento & culpa
não cabe num hai-cai
ou no Mahabharata

os segundos de metal cravando:
suspiros de impaciência
o café quente demais não termina...
parece sem fim como noite de insônia

abrir a janela respirar fundo o ar da manhã
que invade o peito
golpe de espada
o cigarro para retardar o começo de tudo
pensamento plúmbeo

o eterno pensar em si pensar na vida e um sentido
o começo, recomeçar
um plano a mais: reelaborar o ser
sem dor ou autocomiseração
mais um plano para o mês que vem

água morna caindo no corpo
mortas células escorrendo no desvão
fios de cabelo
descendo ao Hades
ao encontro do enorme detrito humano
monstro que não para de crescer

mas o sol ainda é o poema
que se sobrepõe
o sol ainda é um deus
acariciando as lápides obscuras
e não obstante o homem
a turvar a vida com sua melancólica ilusão
ele brilha...