quinta-feira, 22 de maio de 2014

o forasteiro


A ave era antropomorfa como um anjo
E solitária como qualquer poeta.
(Jorge de Lima)
chegou à pequena cidade
quando ainda era tempo nublado cor de chumbo
vestia uma roupa que não se sabia marrom
ou simplesmente encardida

o forasteiro tinha a face deformada
órbitas desconjuntadas
e seus olhos eram caroços tímidos de azeitona
o rosto torto
queixo brusco
e sua boca um rascunho de lamento

vagou dois dias buscando emprego
os homens lhe olhavam de soslaio
não o queriam nem para carregar dejetos dos porcos

as crianças o temiam
choravam ao encará-lo
os adolescentes escarneciam de sua aparência
no entanto ele mantinha o mesmo cenho rude
(provavelmente não conseguia
dar expressão à face)

dormiu a noite na praça
na manhã seguinte um pároco
deu-lhe comida, ofertou banho e roupas limpas

o forasteiro nada falava, mas respondeu
com dois olhos úmidos...

voltou para a pracinha e de suas mãos nasceu
uma flauta transversal em madeira
colocou o bocal em seus lábios de dor

e todos estranharam aquela melodia
bonita e melancólica que ganhava o ar
e invadia lares

espantaram-se os pedestres
ao ver que era o mendigo disforme
quem exalava através da flauta
aqueles doces lamentos sem nenhuma partitura

a cada momento uma canção mais linda que a outra

“como uma criatura tão feia
pode desenhar tão lindamente
com sons”
disse o vendedor  ambulante

“deve ser coisa do diabo”
disse o oleiro

uma senhorinha encurvada disse que
era coisa de deus...

ao fim da tarde parou de tocar

mas na manhã seguinte as melodias etéreas ressurgiram
pessoas lhe deixavam moedas
e presentes
ele agradecia baixando a cabeça respeitoso

as crianças que outrora lhe temiam
observavam admiradas
e queriam também ter uma flauta
e aprender a fazer poemas doridos com notas musicais

por seis dias ele adornou a pequena cidade com sua música

o sétimo dia amanheceu sem a sua flauta

mas na pequena cidade
já não era tempo nublado
e todos lembram até hoje
do forasteiro disforme
sua flauta

e as melodias lindas e misteriosas

permaneceram até hoje em seus corações.

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