eu sonhei um pouco mais
para isso tudo,
para minha vida, para
nós.
“é bom que tenhas
parado de sonhar, teu café esfria
já são 7 horas”
porque dois pães se
não tenho fome?
há quem tenha fome e
sede
olho culpado para os
pães
a essa hora sinto
náusea
onde coloquei minhas
chaves?
os dias
burocraticamente iguais...
e se não forem iguais,
são piores
pois ainda com a
mesmice
é bom, ao menos,
estar saudável
os fins de semana
iguais, também burocráticos
a vazão burocrática...
talvez a cópula dos
peixes seja mais pessoal
é bom, ao menos,
estar saudável
(pensar fazendo a
barba:
nos besouros mecânicos
– nas molas dos relógios
nas bactérias da
esponja velha na ferrugem no barbeador
no coador de café nas
tartarugas que vivem cem anos
porque não fumam no
cara que amputou a perna
por causa da diabetes)
“7 horas e vais
perder novamente o ônibus
7 horas e vais perder
7 horas
definitivamente vais
perder...
perder, perder, perder”
talvez seja bom perder
o ônibus, a hora, o emprego
perder a casa, os
cabelos, os dentes postiços, o despertador
o casamento, a máquina
de lavar, a bicicleta ergométrica
o velocípede, a
torneira rangente, a pastilha de menta
o telefone, o trevo de
quatro folhas
“deixa de ser
patético, homem
faz teu trabalho
humildemente
não reclama, aceita
as ruas estão
apinhadas de miseráveis
eles e eles também não
são livres
a liberdade acaba
dentro do útero
a loba comeu teus
neurônios
estás apenas ossos
ossos patéticos”
ontem alguém disse que já
pensou
em tomar 30 comprimidos
para dormir
e sorriu
eu disse que também
tinha pensado
em fazer o mesmo
nós dois rimos como se
estivéssemos
falando de coisas
triviais
“à noite vamos no
shopping”
sim vamos no shopping,
que boa notícia
vamos no shopping
é uma maravilha ir no
shopping
eu fico de pau duro só
de pensar em ir no shopping
que vida bem
aproveitada ir no shopping
sim, vamos...
muitos anos e esse
portão faz exatamente o mesmo barulho
quando saio
as coisas todas são
previsíveis
mas é bom, ao menos,
estar saudável
eu sonhei um pouco mais
para isso tudo,
para minha vida, para
nós.
E dói, dói lá no fundo do peito. Como todo bom poema. :)
ResponderExcluirObrigado pela leitura, querida. A poética não mudou. Continuo árido... Beijos!
ResponderExcluirHouve dia ou fase da minha vida em que o café da manhã, o banho ou o incenso indiano era o único momento decente da jornada. Houve tempo em que nem isso, virando um redemoinho. Continuo acreditando no café, mas não tenho sentido o aroma dele enquanto passa no filtro. É uma nova fase, porém são dias de jornada menos indecente. Na vida de alguns, as coisas vão se encaixando e desencaixando feito frutos na charrete em declive esburacado. Ótimo poder ler tuas reflexões. Belo poema.
ResponderExcluirObrigado pela leitura, Michele. Gostei bastante do teu comentário. A vida e os poemas são sempre uma busca por sentido. De vez em quando nos deparamos com o VAZIO. Ultimamente ando um pouco mais perto do sentido. Me aproximo e me afasto... Mas o poema é a denúnica de um mundo flácido e precário. E há um eu lírico. Espero que mais pessoas pensem e saiam do transe consumista/hedonista/narcisista: não somos melancólicos, apenas mantemos os olhos abertos para a terra gasta e conseguimos ver as coisas, tais como são... Talvez o sentido é procurar sentido: ele pode estar numa xícara de café, num livro de páginas amareladas, na amizade verdadeira, na conquista de um amor plácido/sem sobressaltos. Em tudo isso, ou no prazer doloroso de continuar tentando aperfeiçoar a arte (mesmo num lugar árido, quase sem ouvidos para ela).
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