[antes que o tempo acabe, é
preciso cantar. mesmo de forma tímida. um ensaio, um grito –
projeto. obra/vida-em-progresso. pequeno poema que ainda não
acabou, que vai se construindo, através do olhar observador: o dia,
a noite e os velhos tomos. uma pena ainda lutando contra o tempo e
perdendo – mas insistindo. um desejo de ser relevante, de revelar
a essência, abrir os olhos dos homens. desejo de um dia poder dizer:
deixei palavras]
primeiro
se
fosse possível segurar a certeza em uma das mãos
e
atravessar com ela o deserto
se
a certeza fosse uma revelação clara e pacífica
mas
ainda carregamos confusos
o
peso de dois oceanos nos olhos
e
a chuva magoa o último passeio
dor
de quem permanece sondando
a
aspereza inóspita de uma floresta –
ah,
alívio de quem parte – com ou sem resposta –
o
vento é o débito com nossa senda e sangue
pois
há o momento em que o calcário e os granitos
são
iguais e semeiam esse cansaço
de
não conceber a eternidade.
os
deuses não são eternos
tornam-se
obsoletos como roupas
ainda
assim indagamos a eles
(com
palavras abafadas numa necrópole):
ah
nós tão ínfimos
insetos
numa adega abandonada,
teremos
a possibilidade de conhecer
o
escudo contra o tempo?
e
por um instante antever
o
que é inabalável,
mesmo
que percamos os olhos nesta revelação?
é
tão improvável.
todos,
depois de terem visto o velho mundo
e
tirado fotos de igrejas, estátuas
saem
de olhos tristes pois esperavam mais
mais
do que monumentos mortos,
que
só dizem morte
um
dia desaparecerá este modo de ser
esse
riso confuso
essa
confiança nos frutos do tempo
e
o enamorar-se pelas coisas líquidas
um
dia quando o dia estiver perto
teremos
a memória como utensílio
e
um hábito de conviver com os mortos
na
sala de estar vazia
o
cortejo será quase casual
um
ensaio para a sombra
e
os dísticos derradeiros
não
causarão desconforto
depois
que os dias forem este sol entrando na janela
feito
um refrão
ficaremos
humildemente lembrando
que
era tênue a infância
e
uma afronta às horas poder brincar e criar
a
investida
o
ensaio para a beleza
segundo
o
quarto de quimera
ainda
guarda os resquícios de seus gestos
o
travesseiro mantém a forma macia do seu sono
no
lençol o aroma da sua pele
e
o copo d'água à espera do seu hábito
faz
parecer menos remota sua ausência
o
copo espera
seus
lábios que já não beijam
já
não dizem
se
fecharmos os olhos
sua
imagem surgirá
provisoriamente
mas
as engrenagens e os galos
trabalharão
para desvanecer sua figura e voz
quimera
parece nunca ter vivido
foi
alguém que sonhou sua vida?
É
possível que ela nunca tenha existido
a
despeito do quarto
manter
os seus últimos rastros
nesse
ínterim a vida segue
lembrando
que o brilho de um olhar
e
a sede em um copo
é
instante prestes
a ser
partido
terceiro
quatro
da manhã
as
cartas surradas
nas
mãos manchadas de nicotina
parece
faltar muito tempo
para
o jogo ter seu término
e
os jogadores, ébrios -
enfim
se dispersarem
a
madrugada suspensa – aquém
e
além do espaço
sob
os ícones de paus espadas
moedas
são metáforas
de
uma riqueza que não se aposta
e
o confronto com o dia
inevitável
os
dentes dos jogadores estão cinzentos
e
gastos como as imagens dos reis e valetes
começa
a desbotar no horizonte
uma
espécie de sábado
um
prenuncio eloquente de sábado
mas
enquanto não acaba o jogo
é
sexta.
enquanto
não acaba a cachaça
é
noite de sexta-feira
tentando
penetrar
na
brecha onde o tempo não passa –
a
despeito do esforço
há
de ser sábado
e
depois domingo
e
depois
quarto
quem
há de duvidar
de
que seremos olvidados?
através
de documento oficial
nos
foi informado acerca da lembrança
e
que o sangue pretérito
não
honrará o futuro
todo
esforço é pouco para nominar o mistério
e
reter a voz nesse mundo de coisas breves
todo
esforço é pouco
mesmo
assim é inevitável enfrentar mais um cortejo
reprimir
o cansaço
resto,
resíduo
o
que restará de mim?
por
um tempo dirão
que
era distraído e ficava
deveras
curvado enquanto trabalhava
o
que restará de mim? Restolho, resíduo?
vão
reaproveitar meu guarda-chuva
meus
sapatos continuarão sem rumo?
e
os versos sem prumo que deixarei
algum
sentido encontrarão nessa terra?
nem
guerra nem pássaro pousado
no
cano do fuzil
é
essa fome e essa febre
esse
sacrifício de não dormir
para
sublevar o silêncio
e
sentir a acolhida dos anjos-invenção
é
preciso dizer as palavras
para
abrir uma passagem dentro da rocha
é
preciso de palavras que saciem a vontade de prece
para
entrar no íntimo do ser
é
necessário relembrar ao homem o poder
de
dar fenômeno às coisas
quinto
muito
antes de nos depararmos
com
a história de cronos
deus
caviloso que devora os filhos
ou
de sísifo execrado
à
eterna pedra, eterna pena
antes,
também, de sabermos decifrar
as
letras, suas sutilezas, seus ardis
somos
iniciados na leitura das horas
em
relógios incansáveis
e
juntamente com tal ciência
aprendemos
a medir o tempo
através
de calendários
o
que um menino
poderia
ter contra o tempo
se
na infância de seus dias
é
quase eterno?
na
sala que vai se tornando antiga
no
pulso ferindo o osso
os
relógios, todos, despertam
no
tempo certo de
imantarem
a noite
com
presságios de de cal e sono
e
vão assumindo formas diversas:
seja
o ronco do encanamento
a
torneira pingando
o
grito deserto e pontual do cão
na
madrugada
o
mais terrível objeto
se
projeta, o maior algoz
dos
frutos, todos
não
é o espelho
mas
o relógio: monstro vário
nesse
contato
tácito
com a morte
onde
está o projeto
que
silencie
a
voz miúda das engrenagens?
(sem
que percamos esse raro sopro
-instante)
tão
engenhosas, engrenagens
a
desdenhar de nós
e
do relojoeiro
criatura
taciturna
e
sem tempo
onde,
onde
o
refúgio da azáfama?
onde
não ser sísifo morto-vivo
do
cotidiano (num dia que
resume
todos)?
não
existe, definitivamente
numa
forma cabível
aos
olhos pequenos
entretanto
o que não existe
na
cegueira de ver tão só o tátil
pode
ser inventado - imaginado
ah,
imaginação brinquedo achado inútil
da
infância -imaginação
brinquedo
doado sem piedade
ao
orfanato dos sonhos
e
ser imaginação
não
é ser menos
tendo
em mente
que
só o imaginado perdura
nessa
luta do homem
contra
as rochas
mistério
e memória
no
ámago desse fruto mal sabido
há
um segredo, um esconderijo
na
reverdescência dessa arte
o
verbo, o verbo:
linguagem
que
sempre esteve em nós
linguagem
feita
para superar estátuas
colunas
que o vento
e
a areia consomem
assim
o
jogral se escondeu
na
sombria biblioteca
e
consumou a beleza
o
mundo pequeno
a
vida – instante
mas
a arte fez-se longa
no
gesto de uma religião