sábado, 29 de agosto de 2015

Poema para Vanessa Regina

É a luz da tua Casa
Que te enche de voos

E na paciência de lidar
Com pequenos brilhantes
Adquires a precisão
Das pétalas

O Sol invade
As janelas
Cumula de ouro tuas mãos

É clara tua casa silábica
Preces ao revés
Cortam os adjetivos fáceis
E gerúndios de pó

A morte é uma palavra
Um dínamo
Pra teus raios lúcidos

E na dor o que mais destilas
É vida
É vida que desconheces
E pulsa na tua poesia

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Aparição

Meu corpo pequeno
Na cama imensa:
Tamanho barco a vela

Meu corpo de 1,74m
Intenta o sono e o esquecimento
De um dia lamacento
Com feridas frontais

Mas vem vindo da rua
Do pátio nu
Vem vindo nítido
O som de uma sacola plástica vazia
Tangida pelo vento

Ela geme como aparição
Trazida da infância prescrita
É um finado que fala o chilrear
De cartas queimadas
Fístulas de um exílio

Uma sacola plástica
Ou a cabeça de um corvo
Nas migalhas de Palas?
Um mocho agonizante
À beira da janela?

O vento, a noite fria e encorpada
A solidão a saudade de um rosto
A espera de um amigo morto
Fazem da sacola plástica
Um tumor sutil
No fruto futuro
Da aurora

Aparição

Meu corpo pequeno
Na cama imensa:
Tamanho barco a vela

Meu corpo de 1,74m
Intenta o sono e o esquecimento
De um dia lamacento
Com feridas frontais

Mas vem vindo da rua
Do pátio nu
Vem vindo nítido
O som de uma sacola plástica vazia
Tangida pelo vento

Ela geme como aparição
Trazida da infância prescrita
É um finado que fala o chilrear
De cartas queimadas
Fístulas de um exílio

Uma sacola plástica
Ou a cabeça de um corvo
Nas migalhas de Palas?
Um mocho agonizante
À beira da janela?

O vento, a noite fria e encorpada
A solidão a saudade de um rosto
A espera de um amigo morto
Fazem da sacola plástica
Um tumor sutil
No fruto futuro
Da aurora

[A Nova poesia]

A Nova poesia
Que vende como revista Veja
É diluição de Leminski

1% de Leminski
É diluído em 99% de água
Desse resultado
Retira-se 1%
E mistura-se com 99% água

É possível substituir a água
Por álcool
Ou apadrinhamento

A mesma receita também
É feita com Manoel de Barros
E Ana César

Há quem diga que funcione
Os doutos dizem que é placebo.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Elegia

A artéria-telégrafo irrompe compulsiva
Devora nossos lábios no amanhecer: ficamos absortos
Enredados num novelo de presságios

É a hora do Leão sem forças ver
O rumo oblíquo e inevitável da vida
Aquele maxilar fechado com um torniquete
O deserto soprando cal virgem
Sal e cinzas nos olhos

A asa do corvo é imorredoura e esconde o sol
Para que seja um dia frio e escuro
Por muito tempo não haverá dia
Apenas um relógio de pulso sem pulso
Na areia-lembrança de uma existência gorada

Há um século e meio
Que os Lilases se esqueceram de florir
Mas Whitman vem me abraçar na hora fatal
Whitman, Whitman
Um caderno para apontar
Minha corrosiva saudade
E todo cigarro possível
Para queimar minha língua e pulmões

Jogaram teu corpo enrolado num pano
Com a aparência de um cristo sem valia
Numa caixa para esperar o carro negro
Teu corpo balançando no carro
Rumo aos últimos ajustes e pompas para a despedida

O féretro marcado para as quatro horas
Quatro horas em ponto quando aeroplanos ficam sem fôlego
E se desfazem no ar como cera derretida
E uma viúva olha para o céu sem Ícaro sem esplendor

Lembro a última vez que teu olhar rejuvenesceu
Lembro a última vez que teu dedo apontou para o céu
E a música era teu desejo
E o estrondo no chão do teu corpo
Cada vez mais mole e sem fonemas

Agora Whitman me sustenta
Como um segundo pai
Imantado no arvoredo da minha ansiedade
E grita: o renascido, o renascido!
O Pequeno Renascido: o nome dele
É a vida que não se partiu!
Mesmo assim minhas lágrimas caem quentes
Sob o rosto de pedra que um dia foi meu pai

A voz e o nome de Emily Dickinson se libertam do musgo
Sua voz é um crucifixo trêmulo
Mas mesmo assim ela diz que ainda existem os barcos
Os barcos e um mar salgado e imenso
Para um menino contemplar e chorar sem culpa.

[Talvez eu já tenha lido]

Talvez eu já tenha lido a palavra-sentença
Ou verso-lampejo, sintagma de luz
Que é chave & porta de acesso
Para a compreensão

Talvez estivesse em Blake, Borges
Numa estrofe de Camões ou Dante
Em um personagem de Shakespeare
Ou no Dharmmapada

Talvez a sentença-chave
Eu a tenha ouvido do bêbado
Que desconstruía o macaco nu
Ou na voz do amigo simples
Ora intimo das nuvens
Que tocava gaita de ouvido

Escusado procurar em livros
Já lidos ou na memória...
Pode ser uma palavra apenas
Um som escondido
Na selva da distração

No fim eu terei de deixá-la
(Essa sentença verso palavra...)
Aflorar como algo meu
Num momento de epifania
Senti-la no duodeno

Para enfim descortinar o mundo
E morrer em paz.

[É apenas um idiota]

É apenas um idiota
Que atravanca o perfume e a paz da aurora
Pensam
Um tolo como Artaud morto
Segurando um de seus sapatos

Tem lesmas no olhar e é
Egoísta como a noite-chumbo
E o sono-tédio-sulfúrico
Moeda enferrujada
De país que jamais existiu

Apenas um idiota
Com uma resma de equívocos
Debaixo do braço
A caminhar curvado
Como um túmulo tímido

Esse idiota sou eu
Tentando domesticar
O corpo de um crocodilo
Machucando sem querer
O repouso das árvores

Que carroça rangente o trouxe ao mundo?
Em que estrebaria ficou escondido por tanto tempo?
E agora nos surge pondo lágrimas de óleo
Nas vitrines obsoletas
E ofertando rugas
E dizendo o já dito enterrado
Reciclando os mortos
Que jamais quisemos ouvir.


sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Eu

Aceito o escorpião rajado
A correr nas minhas veias
O gosto ferruginoso do álcool
E a blasfêmia da manhã

Aceito o mel da indiferença
O bombardeio de ossos
E os cacos de vidro
Que mastigo casualmente

Aceito o cavalo indócil
E abro o coração
Para o verme da lira e o vexame
Dos espelhos

Recebo o riso de escárnio
Como elogio
E semeio meu verbo
Nas grutas da maldição

Na sobrevida entre perigo
Ressaca e mofo – sorvo calmo
Com certa volúpia
O thinner
O  veneno das cobras
E o rugido dos lobos
Sem precisar dizer
Qualquer palavra de escusa. 

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Apontamento.

Depois de 36 anos já me acostumei 
Com meu jeito, com minha aparência
Com meu rosto no espelho

Mas de que forma o mundo me vê?
Será que vê meu rosto perdido entre
Milhões que também julgam serem vistos?

Muitas vezes parece ilusão
Ilusão essa imagem que vejo todo dia ao acordar

Um sonho obscuro que envelhece
Sonho marcado pelo tempo
No fundo do fundo
De algo que ignoramos
E nos ignora.

terça-feira, 18 de agosto de 2015

acidente de trabalho

dos piores acidentes de trabalho
é o acidente vascular cerebral
segure firme, amigo
é o pão de cada dia

“mas não me sinto bem e
simplesmente dizem
que não gosto de trabalhar”
segure firme, irmão
daí depende sua moradia

acidente de trabalho é
essa lenta e fatal hemorragia
essa perda de vida e alegria

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

o sótão

mais uma vez adentro o sótão
não para contemplar
os estilhaços de vida
as sobras díspares
de brinquedos decepados
enfeites quebrados de natal

passo a tarde
nesse último e árduo
trabalho
de ver o passado enferrujado
pela última vez
limpando, descartando  tudo

não quero a volúpia
de objetos
cheios de memória
e rancor
é preciso limpar tudo
tirar o pó
e fazer uma clareira

não guardarei mais objetos de lágrimas
no sótão – ora limpo e claro
com sua claraboia translúcida
por onde entrará sempre
a luz do sol. 

domingo, 16 de agosto de 2015

Poema

Se tudo está escrito
E tem uma finalidade
Qualquer momento
Mais simples
Já foi planejado
E há de ser
Inevitavelmente.

E todo ímpeto,
Por mais insólito
Que move
E muda a direção dos dias
Em suma, está correto.

Somos donos do destino?
Guerreiros com seus gládios escudos
Tornaram-se heróis
Sem saber

E nós com nossas vidas tão símplices
Tão anônimas
É possível lutar contra
Ou a favor do escrito
Que rege nossos dias?

Nos resta lutar, tão só
O que tiver de vir é mistério
À beira da rocha
Silenciosa.

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Passeio Noturno

Íamos pelo caminho
Falando de sonhos
Com bibliotecas nos olhos
Acenando as para vozes
De Whitman e Emily

Íamos pelas ruas escuras
Recortando a noite
Proferindo desespero
Imantado e imagético
De Sylvia
E sua beleza indócil
Articulando
As eternidades &
Labirintos
De Jorge Luis Borges

Íamos tu e eu
Buscando no passado
Uma senda para o futuro
De nosso cancioneiro
A recitar
Na página de estanho da lua

Até que a máquina
Rugiu brusca & intentou
Trincar o tempo
Máquina concebida
Para dilacerar
Almas quebradiças
E os corpos líricos~
A máquina até hoje tenta 

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Poema para Walt Whitman


preciso que me ensines o entusiasmo de ver como se vê pela primeira vez –
a flor os campos os velhos prédios as árvores a maçã a ferida que deixam os mortos -
toda cartografia da minha américa familiar
(diferente da tua américa – e da américa que sonhaste)
e sentir como vida adentrando meu coração

velho amigo que nunca me conheceste desaparecido em 1892
(mas que guardavas a certeza que um dia eu existiria e escrevias para mim também)
me oferta o segredo de aceitar sem culpa meu corpo
elementar com desejos limpos e profundos
preciso que me ensines a amar os homens mulheres e as manhãs
com suas qualidades defeitos e palavras oblíquas

sei que sou incompleto falho e preciso muito
em noites de insônia ler teus cantos
para encontrar em paz meu hoje de apontamentos
planejar minha força minha voz e ser eu mesmo
aprender a simplicidade de uma alma despida de mágoa e rancor)

velho amigo, irmão:
demonstra com tua voz gasta e lúcida
a simplicidade da poesia nos teus versos
o abraço e o afeto sincero de um homem sem ambições mundanas
me faz acreditar nas crianças que nos tratam
como coisas obsoletas sem valor
me dá a coragem de aceitar que sou quase esquecido
pobre e nunca verei a glória
mostra-me que a glória é nada
e o que se sonha na solidão é tudo

meu amigo
que adentraste em mim na minha barba grisalha
quero o poder dessa simplicidade
pois tuas folhas são minha bíblia epos amuleto
e minha força de continuar escrevendo

tuas folhas despertam em mim a qualidade natural do amor
tuas folhas despertam em mim a resignação de seguir
mesmo tendo poucos ouvidos para me ouvir
e sabendo que assim está certo

ah, essa força de escrever a todos que dormem,
todos que acordaram às 5 da manhã
todos que sofrem nas repartições públicas
todos que catam lixo todos que sentem frio
todos os ricos que desconhecem suas almas
não sabem o que é ter uma alma
para os professores que não são valorizados e também são poetas
escrever para todos mesmo que minhas palavras soem
dentro de uma caverna num pequeno quarto em camden ou pelotas

eu podia seguir qualquer outro caminho
mas sigo a poesia – a força maior que me move
a poesia que começo a escrever
quando a chaleira anuncia o café da manhã.

Outro Tigre

...mesmo
Intoxicado pelo mofo das paredes
Alcatrão
Monóxido de carbono
Fumo das fábricas
Intoxicado:
Carvão nas artérias
                        Substância corrosiva
Nas retinhas
                        Oriundas do tempo
Álcool morno
                        Dos pubs
Na precariedade do rosto  

Continuo vivo
Pois há um tigre possante
                        Grunhindo
No meu peito

Que me faz vencer o asfalto
E as cidades que intentam
Cimentar meus olhos

Enquanto esse tigre gritar
Não acompanharei  
                                   Dylan Thomas no inferno
Nem beberei 36 doses de uísque

Um dia serei somente o tigre
Esconso

               E áspero           

                              

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Um poema para Whitman

Velho amigo Whitman:
Preciso que me ensines o entusiasmo de ver
Como se vê tudo pela primeira vez – a flor os corpos
Os velhos prédios as árvores a maçã
A ferida - toda cartografia da minha América familiar
(Diferente da tua América - da tua América que sonhaste)
E sentir como vida adentrando meu coração

Velho amigo que nunca me conheceste morto em 1892
(Mas que tinhas certeza que um dia eu existiria
e escrevias para mim também)
Me oferta o segredo de amar sem culpa meu corpo  
Elementar com desejos íntimos
Preciso que me ensines a amar os homens mulheres e as manhãs
Com suas qualidades defeitos e palavras oblíquas

(Um grande amigo me comparou a ti, meu velho irmão
Mas sei que sou incompleto falho e preciso muito
Em noites de insônia
Ler Os Cantos de Mim mesmo
Para compulsar em paz meu hoje de apontamentos
Planejar minha força
Aprender a simplicidade de uma alma nua despida de mágoa e rancor )

Velho amigo, irmão:
Demonstra com tua voz gasta e lúcida
A simplicidade da poesia nos teus cantos
O abraço e o afeto sincero de um homem sem ambições mundanas
Me faz acreditar nas crianças que nos tratam
Como coisas obsoletas sem valor
Me dá a coragem de aceitar que sou quase esquecido
Pobre e nunca verei a glória
Mostra-me que a glória é nada
E o que se sonha na solidão é tudo

Meu amigo
Que adentraste em mim na minha barba gris
Quero o poder dessa simplicidade
Pois tuas folhas são minha bíblia epos amuleto
E minha força de continuar escrevendo

Tuas folhas despertam em mim a qualidade natural do amor
Tuas folhas despertam em mim a resignação de seguir
Mesmo tendo poucos ouvidos para me ouvir
E sabendo que assim está certo

Ah, essa força de escrever para todos que dormem,
Todos que acordaram às 5 da manhã
Todos que sofrem nas repartições públicas
Todos que catam lixo todos que sentem frio
Todos os ricos que desconhecem suas almas
Não sabem o que é ter uma alma
Para os professores que não são valorizados e também são poetas
Escrever para todos mesmo que minhas palavras soem
Dentro de uma caverna ou num pequeno quarto em Camden

Eu podia seguir qualquer outro caminho
Mas sigo a poesia -  única força que me move 
A poesia que começo a escrever
Quando a chaleira anuncia o café da manhã.


terça-feira, 4 de agosto de 2015

[não há culpados quando a noite avança]

Não há culpados quando a noite avança
E as almas entram em colisão
Explodem dois asteroides
No céu dos nossos olhos vermelhos

Não há culpados quando os dias que fizemos
Num instante se tornam inservíveis
Como as pêras esquecidas ou como a cerveja
Morna morta num copo às quatro da manhã

A harmonia dos corpos em noites indolentes
Disfarça o fel e a ferrugem natural do tempo
Por que no fim a solidão é um refúgio
Dessa eloquência de palavras gris
Muito proferidas no silêncio

Tudo explode tudo queima e não há culpados
Há um rio-lugar-comum
Sempre dizendo desse encontro
Como a véspera do que nos acostumamos a esperar
Já quase sem desespero

Não há culpados quando cada um carrega seu próprio abismo
E é cada vez mais funda a busca pelo outro
E nos afundamos mais ao procurar

Não há culpados e por isso mesmo nos perguntamos
Por que está acontecendo?
Seríamos velhos demais e o amor é novo?

Sim, o amor é novo o amor é virgem
Julgamos saber tanto um sobre o outro
Mas nos desconhecemos  muitas vezes
Não há culpados, só uma dor que não cessa
Lágrimas que não secam e saudades prévias.

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

um dia apenas

um dia é a odisseia profusa
desse ulisses que joyce nos deu
um dia é pouco na vida
de um indivíduo mas um dia
é tempo para derruírem-se
duas torres

em um dia é possível abater mitos
romper com o ríspido ruído
das rodovias
em um dia o porto vira sal
e o silêncio ganha profundeza

um dia a metamorfose
de clarice ainda em nós
solfejando  infinitamente

em um dia o timbre dos metais
soam mais altos e a força
muda a correnteza
e o sabor dos ventos

um dia basta para ser outro
largar no caminho a bagagem pesada
a maquiagem
a polidez
e reaprender o voo.

domingo, 2 de agosto de 2015

esplendor de uma princesa

não sei como vim parar aqui...
(se meu pai não tivesse se matado...)
minto: anúncio de jornal:

quer ganhar dinheiro?
entre para nossa equipe 
moças maiores de 18 
local seguro
totalmente discreto
lucro garantido

minto: se meu pai não tivesse morrido...

recebo  uma fauna exótica
que deposita, pontualmente
surradas notas no criado-mudo 
e acerbo gozo no meu corpo
pingos desamparados de sêmen suor
em minhas cobertas

um anúncio de jornal...
eu que não queria desmanchar as mãos 
em água e roupa suja
quel siècle à mains!
je n'aurai jamais ma main. 
après, la domesticité mène trop loin. 
no entanto, todos dias meu corpo
em amargo sacrifício
(se ele não tivesse se matado
daquele jeito...)

ganhar a vida... 
há muito descobri
não adianta jogar 
o tempo
a espalhar cinza no meu colo 
e no meu olhar
vence, sempre 
hoje, por exemplo
mais um dia em que ele venceu 
um silêncio enferrujado
nos desvãos da faina

parcimonioso
vai me inutilizando
sem perceber
sem sentença
sem hora marcado
um pouco a cada dia
um vórtice que me leva  
ao indefinido

(se meu pai não tivesse se matado...
cronologicamente o uísque trêmulo
lhe enfraquecendo as pernas
sem forças para precipitar-se
de vez no abismo)

uma luz de vez em quando 
que a rotina é a tampa do caixão
(se estivesse vivo hoje
eu não estaria aqui)

uma luz imoderada 
de vez em quando, sim, 
só quando autocomiseração 
dá vontade de pôr a cabeça 
nas trilhos de um trem
quando as horas são algemas 
e têm cheiro de água sanitária

um anúncio de jornal
quer ganhar dinheiro?
entre para nossa equipe 
moças maiores de 18 
local seguro
totalmente discreto
lucro garantido

porque não tento 
ganhar dignamente minha vida?
por que não sei 
porque não quero
porque preciso me punir
imaginava sua dor
vivia seu pesar 
eu não era mais criança
e não fiz nada

o passado agonizando 
numa espécie de querer o fim
o passado, ah meu deus o passado
eu sozinha
minha mãe: delicada o suficiente
para encobrir meu pai!

eu queria ter casado
ou ter morrido pura
para virar anjo
meu pai me conduzindo pela mão
me pegando ao colo
pois eu tinha medo da ponte de madeira

lembro que ele era triste 
mas tinha um olhar doce e úmido
olhar frágil de vencido
mas um olhar de quem sabe o que é amar alguém
um olhar calmo que perdoa
um olhar de pessoa que se arrepende
um olhar de alguém fraco 
mas capaz de entender
de me entender
(se estivesse vivo
eu seria uma princesa)
ah deus onde encontro 
a brancura ingênua
das revistas de colorir
onde me encontro, menina
com tranças no cabelo...