terça-feira, 25 de agosto de 2015

Elegia

A artéria-telégrafo irrompe compulsiva
Devora nossos lábios no amanhecer: ficamos absortos
Enredados num novelo de presságios

É a hora do Leão sem forças ver
O rumo oblíquo e inevitável da vida
Aquele maxilar fechado com um torniquete
O deserto soprando cal virgem
Sal e cinzas nos olhos

A asa do corvo é imorredoura e esconde o sol
Para que seja um dia frio e escuro
Por muito tempo não haverá dia
Apenas um relógio de pulso sem pulso
Na areia-lembrança de uma existência gorada

Há um século e meio
Que os Lilases se esqueceram de florir
Mas Whitman vem me abraçar na hora fatal
Whitman, Whitman
Um caderno para apontar
Minha corrosiva saudade
E todo cigarro possível
Para queimar minha língua e pulmões

Jogaram teu corpo enrolado num pano
Com a aparência de um cristo sem valia
Numa caixa para esperar o carro negro
Teu corpo balançando no carro
Rumo aos últimos ajustes e pompas para a despedida

O féretro marcado para as quatro horas
Quatro horas em ponto quando aeroplanos ficam sem fôlego
E se desfazem no ar como cera derretida
E uma viúva olha para o céu sem Ícaro sem esplendor

Lembro a última vez que teu olhar rejuvenesceu
Lembro a última vez que teu dedo apontou para o céu
E a música era teu desejo
E o estrondo no chão do teu corpo
Cada vez mais mole e sem fonemas

Agora Whitman me sustenta
Como um segundo pai
Imantado no arvoredo da minha ansiedade
E grita: o renascido, o renascido!
O Pequeno Renascido: o nome dele
É a vida que não se partiu!
Mesmo assim minhas lágrimas caem quentes
Sob o rosto de pedra que um dia foi meu pai

A voz e o nome de Emily Dickinson se libertam do musgo
Sua voz é um crucifixo trêmulo
Mas mesmo assim ela diz que ainda existem os barcos
Os barcos e um mar salgado e imenso
Para um menino contemplar e chorar sem culpa.

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