domingo, 2 de agosto de 2015

esplendor de uma princesa

não sei como vim parar aqui...
(se meu pai não tivesse se matado...)
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minto: se meu pai não tivesse morrido...

recebo  uma fauna exótica
que deposita, pontualmente
surradas notas no criado-mudo 
e acerbo gozo no meu corpo
pingos desamparados de sêmen suor
em minhas cobertas

um anúncio de jornal...
eu que não queria desmanchar as mãos 
em água e roupa suja
quel siècle à mains!
je n'aurai jamais ma main. 
après, la domesticité mène trop loin. 
no entanto, todos dias meu corpo
em amargo sacrifício
(se ele não tivesse se matado
daquele jeito...)

ganhar a vida... 
há muito descobri
não adianta jogar 
o tempo
a espalhar cinza no meu colo 
e no meu olhar
vence, sempre 
hoje, por exemplo
mais um dia em que ele venceu 
um silêncio enferrujado
nos desvãos da faina

parcimonioso
vai me inutilizando
sem perceber
sem sentença
sem hora marcado
um pouco a cada dia
um vórtice que me leva  
ao indefinido

(se meu pai não tivesse se matado...
cronologicamente o uísque trêmulo
lhe enfraquecendo as pernas
sem forças para precipitar-se
de vez no abismo)

uma luz de vez em quando 
que a rotina é a tampa do caixão
(se estivesse vivo hoje
eu não estaria aqui)

uma luz imoderada 
de vez em quando, sim, 
só quando autocomiseração 
dá vontade de pôr a cabeça 
nas trilhos de um trem
quando as horas são algemas 
e têm cheiro de água sanitária

um anúncio de jornal
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porque não tento 
ganhar dignamente minha vida?
por que não sei 
porque não quero
porque preciso me punir
imaginava sua dor
vivia seu pesar 
eu não era mais criança
e não fiz nada

o passado agonizando 
numa espécie de querer o fim
o passado, ah meu deus o passado
eu sozinha
minha mãe: delicada o suficiente
para encobrir meu pai!

eu queria ter casado
ou ter morrido pura
para virar anjo
meu pai me conduzindo pela mão
me pegando ao colo
pois eu tinha medo da ponte de madeira

lembro que ele era triste 
mas tinha um olhar doce e úmido
olhar frágil de vencido
mas um olhar de quem sabe o que é amar alguém
um olhar calmo que perdoa
um olhar de pessoa que se arrepende
um olhar de alguém fraco 
mas capaz de entender
de me entender
(se estivesse vivo
eu seria uma princesa)
ah deus onde encontro 
a brancura ingênua
das revistas de colorir
onde me encontro, menina
com tranças no cabelo...

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