não sei como vim parar aqui...
(se meu pai não tivesse se matado...)
minto: anúncio de jornal:
quer ganhar dinheiro?
entre para nossa equipe
moças maiores de 18
local seguro
totalmente discreto
lucro garantido
minto: se meu pai não tivesse morrido...
recebo uma fauna exótica
que deposita, pontualmente
surradas notas no criado-mudo
e acerbo gozo no meu corpo
pingos desamparados de sêmen suor
em minhas cobertas
um anúncio de jornal...
eu que não queria desmanchar as mãos
em água e roupa suja
quel siècle à mains!
je n'aurai jamais ma main.
après, la domesticité mène trop loin.
no entanto, todos dias meu corpo
em amargo sacrifício
(se ele não tivesse se matado
daquele jeito...)
ganhar a vida...
há muito descobri
não adianta jogar
o tempo
a espalhar cinza no meu colo
e no meu olhar
vence, sempre
hoje, por exemplo
mais um dia em que ele venceu
um silêncio enferrujado
nos desvãos da faina
parcimonioso
vai me inutilizando
sem perceber
sem sentença
sem hora marcado
um pouco a cada dia
um vórtice que me leva
ao indefinido
(se meu pai não tivesse se matado...
cronologicamente o uísque trêmulo
lhe enfraquecendo as pernas
sem forças para precipitar-se
de vez no abismo)
uma luz de vez em quando
que a rotina é a tampa do caixão
(se estivesse vivo hoje
eu não estaria aqui)
uma luz imoderada
de vez em quando, sim,
só quando autocomiseração
dá vontade de pôr a cabeça
nas trilhos de um trem
quando as horas são algemas
e têm cheiro de água sanitária
um anúncio de jornal
quer ganhar dinheiro?
entre para nossa equipe
moças maiores de 18
local seguro
totalmente discreto
lucro garantido
porque não tento
ganhar dignamente minha vida?
por que não sei
porque não quero
porque preciso me punir
imaginava sua dor
vivia seu pesar
eu não era mais criança
e não fiz nada
o passado agonizando
numa espécie de querer o fim
o passado, ah meu deus o passado
eu sozinha
minha mãe: delicada o suficiente
para encobrir meu pai!
eu queria ter casado
ou ter morrido pura
para virar anjo
meu pai me conduzindo pela mão
me pegando ao colo
pois eu tinha medo da ponte de madeira
lembro que ele era triste
mas tinha um olhar doce e úmido
olhar frágil de vencido
mas um olhar de quem sabe o que é amar alguém
um olhar calmo que perdoa
um olhar de pessoa que se arrepende
um olhar de alguém fraco
mas capaz de entender
de me entender
(se estivesse vivo
eu seria uma princesa)
ah deus onde encontro
a brancura ingênua
das revistas de colorir
onde me encontro, menina
com tranças no cabelo...
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