segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Arthur

Ele decidiu depois de uma crise – uma complexa crise que não era depressão - tirar a máscara do rosto. Viu-se no espelho. Desde a adolescência não sabia como era o seu rosto. Alguns traços ainda permaneciam do jovem de 17 anos, quando quis assumir a Persona. Agora estava velho, comum e sem esperanças na eternidade. “Será que sempre fui comum? Será que tudo não foi uma vã tentativa de dar sentido e amplificar a simpleza dos meus instantes? Será que não troquei minha vida por um punhado de ilusão?” Perguntava a si, sem desespero. Mas com o cansaço daqueles que já creem inútil se aprofundar. A profundidade do pensamento traz desconforto e aproxima o ser do nada. Ele sempre soube disso, mas insistia. Dessa vez não. Resolveu não perguntar mais; nunca houve qualquer resposta satisfatória. Despiu-se da roupa que sempre foi do seu personagem. Sentiu um calafrio por estar de volta, depois de tanto tempo.
Após vestir-se com casualidade e descuido, juntou todos os manuscritos e livros que foram seus poemas durante mais de duas décadas. Carregou com sofreguidão para o pátio. Montou uma cruz com madeiras velhas. Fez uma montanha e cravou o crucifixo no cume da papelada. Álcool, fósforos. Os versos queimaram, a cruz queimou. A fumaça fez com que seus olhos lacrimejassem. Sobras de suas edições estalavam de prazer, sob a força do fogo. Não sobrou resquício do poeta ou da poesia.
Todos os vestígios de seu trabalho em arquivos digitais também foram apagados. Mas sem nenhum ritual. Apenas a tecla delete.
Por fim, deitou-se na cama com alívio dolorido de quem arranca um peso das costas. O sol será sol, os campos: campos, os sons serão os dos pássaros, carros e gritos.
A angústia acabou; a beleza nunca foi alcançada, por mais que se exaurisse em noites sem dormir. Naquela noite, enfim, dormiu profundamente.


Acordou pela manhã. Fez as malas e enquanto tomava café percebeu: não precisava de malas. Também não havia a quem dizer adeus. “Melhor assim,” pensou, “sem drama”. E partiu.

domingo, 27 de setembro de 2015

Minério

Não quero pôr em grades a felicidade
Não quero pintar olhos ainda mais tristes
Nas meretrizes
Tampouco espalhar pó de arsênio
Nos lares já cinzentos

O que interessa
É desacorrentar Prometeu do dia a dia
Que se submete a todo estado de coisa
E intempérie

E a liberdade é um pouco mais
Do que girândolas e tamborim
Ou um corpo lapidado para os futuros vermes

A alegria
É subterrânea
É preciso procurá-la como se fosse
Um minério.


quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Manhã sem Galo

O vento intenta reordenar as penas dispersas no pátio
Dar forma novamente ao galo – mas é em vão
Juntar segundos de penas sangue e silêncio

Amanhã levantarei da cama e assim como o galo
Não cantarei > estarei disperso no chão do tempo
Que me perde me desordena me desfaz

Amanhã meu crânio estará limpo
E usarei um chapéu conveniente para disfarçar
Estarei bem vestido perfumado barbeado
E ganharei trocados para envelhecer mais depressa

Um bonde ou ônibus me levará
Para o incerto irretorquível do cotidiano
E olharei as pessoas e tentarei dar um rosto para elas
Mas será mais difícil como nos outros dias
(Meu crânio/ uma ossatura branca e asséptica)
E finalmente assumirei o olhar de quem não olha mais

É assim que eles precisam de mim > crânio só-osso
Um relógio de pulso para não perder a hora
E um sorriso no rosto.

(Agora penso no galo morto)

O que odeias em mim

O que odeias em mim é minha respiração intrincada
Meu hábito de pedra embargada / minhas quimeras
Lívidas empalhadas no antro das estantes mortas

O que odeias em mim é meu coração sobrevivente
A despeito de tudo que me corrói / meus batéis
E os périplos cujo ponto de partida é o de chegada

O que odeias em mim é meu silêncio de espada cega
Meu olhar aquoso quando há rios e montes imaginários
Brincando nas minhas tardes claras desabitadas

O que amas em mim é o futuro que a cigana leu
Meu porvir indecifrável - eu melhorado
No embrião de uma manhã que não vingou

O que amas em mim é o talho de nascença na alma
Por onde nasce, por vezes, um arco-íris / O que amas

Em mim é o abraço a remo nesse mar sem sol.

sábado, 19 de setembro de 2015

Todos os mísseis e todas as doenças

Todos os mísseis e todas as doenças e pestilências
E todas as inquietações noturnas - ratos no forro
Cobras corais no travesseiro - apontadas em minha direção

Eu sentirei saudade de ser um esqueleto branco e curvo
Sentirei profunda saudade dos blocos de pedra
Da gravata com nó górdio me sufocando para o bem da humanidade

Será que fui eu o estopim dessa explosão de fratura e tempestade,
De mágoa, silêncio? Eu queria apenas o esboço desse oásis anunciado em
                                                                                                 prospectos
Um grão de paz para poder deitar e acordar sem culpa

Mais gelo para este uísque, que a noite é longa
E o fígado frágil e o abutre traiçoeiro
E nossas mães já não têm lágrimas e mãos para tanta terra

Eu desmontei as pirâmides, envenenei as nuvens
E criei uma chuva cáustica para desgraça dos rostos
E um método inédito de envelhecer fora dos espelhos

Eu pedirei um escudo, armadura, entrarei em desespero
Verei a campa, rezarei pelos mortos nas fotos antigas
E hei de morder os relâmpagos com a ânsia de um pai ausente

Quem disse que é fácil mentir e fingir
Quando não se é ator. Somos menos que albatrozes
Um rifle engatilhado contra o próprio crânio para uma beleza póstuma

E o medo de ferir mais alguém com lábio sulfúrico
Fecho a tampa de ferro da lua acendo o charuto


E carbonizo meu tempo: apartado sou inofensivo.